Há dez anos, estabelecia-se em Portugal e há dez anos concluía com a classificação máxima o curso superior de piano do Conservatório de Lisboa, instituição onde hoje lecciona. Em dez anos, o que mudou? O que há de novo? O que se desenha no horizonte para esta jovem pianista norueguesa que escolheu Portugal para viver?
Abalançando-se à demorada tarefa de construir uma carreira internacional em três "faces" - como solista, recitalista em música de câmara e concertista -, Anne Kaasa começa agora, finalmente a ver "florir" os seus propósitos: a atenção que tem dedicado a obra pianística do seu conterrâneo Grieg já a tornou notada como intérprete deste reportório, de que, recorde-se, Emil Gilels foi lídimo intérprete; a sua parceria com o grande violoncelista norueguês Truls Moerk (que vem com a Sinfónica de Birmingham e Simon Rattle, em Março, ao Coliseu) é garantia de projecção e visibilidade internacional; finalmente, recitais em salas "carismáticas", como Wigmore Hall de Londres, onde actuou no passado dia 11, acabem sempre por abrir mais e mais portas…
As do Palácio Nacional de Queluz abriram-se-lhe na inóspita noite do passado sábado, em cuja espelhada Sala do Trono deu um recital.
O programa era o mesmo que tocara dias antes em Londres: quatro das seis "Peças Líricas, op.54", de Grieg (respectivamente: n.º2, Gangar, n.º6, Klokkeklang; n.º5, Scherzo, e n.º3, Trolltog); os 12 Estudos, op.25, de Chopin; Le Baiser de L'Enfant-Jésus, nº15 dos Vingt Regards sur l'Enfant-Jésus, de Olivier Messiaen; o Gaspard de la Nuit, de Ravel, e, a finalizar, L'Isle joyeuse, de Debussy.
O início não poderia ser mais prometedor: em Gangar, Kaasa revelou-se possuidora de um toucher muito cuidado e capaz de vastas e bem construidas gradações dinâmicas; depois, em Klokkeklang, Kaasa soube criar belíssimas ambiências tímbricas; em Trolltog, soube aliar à rítmica uma intenção burlesca, que viria a ter um expressão exponencial no Scarbo do Gaspard de la Nuit.
Com o Chopin, foi diferente: aparentemente atemorizada perante tal partitura, Kaasa demorou até "funcionar" em pleno. Mas, após os estudo em Réb M, não mais de deixou ser excelente (mormente nos três últimos). O Messiaen foi um prodígio de poéticas harmonias pairantes, de uma beleza alcançada com enorme economia de meios.
Do Gaspard de la Nuit, só não me satisfez plenamente a Ondine (querer-se-ia uma sonoridade mais límpida), porque a "secura" e a concentração expressiva de Le Gibet e a completa transposição musical da desfigurada perversidade de Scarbo foram condizentemente "terríficas".
O Debussy foi a síntese do que atrás disse: conjugação do máximo lirismo e rebuscamento tímbrico com a apoteose virtuosística.
Bernardo Mariano
Dìárìo de Notícias, (Portugal), January 1999